Kindred - Opinião

julho 20, 2021


Podem também ouvir a minha opinião AQUI.

Este é o primeiro livro que leio de Octavia E. Butler e, por isso, não sabia bem o que esperar. Já tinha este livro no Kobo há bastante tempo e esta prece-me a altura certa para o fazer. Acompanhei a leitura também com o audiobook que também está muito bem conseguido. Mas este livro é sobre o quê?

O livro passa-se nos Estados Unidos, em 1976, em que uma jovem mulher negra, Dana, e o seu marido branco, Kevin, se mudam para o seu primeiro apartamento enquanto casados, em Los Angeles. Só que, por razões desconhecidas, Dana vê-se transportada, de forma inesperada, para Maryland, no Sul dos Estados Unidos, ainda durante o período da escravatura, antes da Guerra Civil, no início do século XIX. Assim, ela viaja no tempo, mas também no espaço. O facto de Dana viajar para este período e local, sendo uma mulher negra emancipada do século XX, tem tudo para dar errado. E o que nós vamos testemunhando é, precisamente, ela a tentar fazer sentido do porquê destas viagens e o tentar adaptar-se a essa nova realidade de forma a sobreviver e voltar para casa, no seu tempo, sã e salva. Ela faz várias viagens destas, voltando sempre à Los Angeles de 1976, e o tempo que passa nos dois locais e períodos são diferentes. Por exemplo, numa das viagens ela passa algumas horas em Maryland, que correspondem apenas a alguns segundos em 1976. Por isso, há uma certa distorção da passagem do tempo também.

Este livro tem muito que se lhe diga. As experiências pelas quais Dana passa são o mote para várias reflexões sobre assuntos que vão para além da questão da raça, da escravatura e do preconceito racial. Essas são as questões que, à partida, todos sabemos que vão surgir a partir do momento em que sabemos qual é o mote do livro. No entanto, há mais para além disso. Por exemplo, a noção de lar, de casa. A dada altura, Dana vê ambos os locais e tempos como a sua "casa" e, por isso, há aqui uma natureza paradoxical, uma vez que ela parece que nunca se consegue desligar completamente de Maryland.

Além disso, há uma relação complexa com o passado da escravatura e com a forma como os escravos são retratados. Dana, por um lado, nunca se vê como escrava, mas é tratada como tal, aceitando submeter-se a muitas coisas simplesmente para conseguir sobreviver. Ela diz, várias vezes, que nada daquilo é como costumava ver nos filmes e ler nos livros sobre o tema, talvez porque Dana se depara com uma realidade emocional e psicológica que não se consegue adquirir de outra forma a não ser através das vivências. Neste aspecto, Dana vai tendo contacto com os outros escravos, com as suas emoções, com as formas que eles encontraram para sobreviver muitas vezes através da submissão. Mas é uma submissão que esconde raiva, medo, repulsa, desejo de vingança pelo que lhes fazem - nunca é algo vazio de emoções ou profundidade psicológica. Há uma certa aceitação das humilhações pelas quais passam por uma questão de sobrevivência, mas estas pessoas não são emocionalmente ou psicologicamente passivas. Por isso, há aqui uma certa recuperação de realidades psicológicas destas pessoas que viveram a escravatura.

Outro aspecto explorado, é a questão da empatia e do seu preço. Dana estabelece um laço forte com um rapaz, Rufus, que vai acompanhando ao longo da sua vida, das várias vezes que ela volta para Maryland, em vários anos diferentes. Rufus é filho de um proprietário de terras e esclavagista e Dana, conhecendo-o desde pequeno, decide tentar moldá-lo para que ele não acabe como o seu pai. E apesar de Rufus cometer actos cruéis, cheios de maldade, Dana tenta sempre desculpá-lo, ou encontrar uma razão lógica para o que ele fez. Confesso que isso me irritou algumas vezes, porque parecia que ela não via ou não queria ver a realidade que estava mesmo à sua frente, mas isto só prova que as relações humanas são muito mais complexas e cinzentas do que parecem e Dana tenta sempre perceber o que está por detrás das acções de Rufus. E quando gostamos de alguém é precisamente isso que também fazemos: vamos "desculpando" várias coisas, tentando entender o porquê, colocando-nos no lugar da outra pessoa, antes de a descartar completamente.

Gostei muito deste livro por todas estas questões, por ser um livro com camadas e pela escrita de Butler que é bastante fluida, directa, simples, por vezes dura, e nada complicada de se ler. A autora fez um trabalho de pesquisa histórica notável para conferir uma aura realista ao seu livro, levando-nos com Dana àquela que foi uma realidade violenta e de sofrimento que não pode nem deve ser apagada. Gostei das personagens, principalmente da relação que Dana desenvolve com Rufus, que é bastante complexa. Gostei das questões colocadas, das camadas que a história tem e da densidade psicológica conferida a todas as personagens, até as secundárias.

O livro é muitas vezes catalogado como Ficção Científica, pelo facto de lidar com viagens no tempo, mas acho que o mais correcto é considerar este livro uma fantasia histórica, porque tem muito mais de ficção histórica do que com ficção científica, e havendo viagens no tempo, esse pode ser considerado o elemento fantástico. Aliás, a própria autora rejeitou várias vezes em entrevistas que este livro fosse FC, escolhendo o termo "grim fantasy", uma vez que não há nenhuma ciência ou explicação científica no livro. O facto, é que há coisas que não são reveladas, questões que não são respondidas, deixando-as para o leitor resolvê-las por si mesmo.

Não posso deixar de recomendar este livro, principalmente a quem gosta de ficção histórica no período da escravatura, e quero muito continuar a ler as obras de Octavia Butler.


5/6 - Muito Bom

(Este livro foi lido para o desafio Mount TBR Reading Challenge 2021)

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Detalhes

Lido no Kobo
Sinopse:
"The first science fiction written by a black woman, Kindred has become a cornerstone of black American literature. This combination of slave memoir, fantasy, and historical fiction is a novel of rich literary complexity. Having just celebrated her 26th birthday in 1976 California, Dana, an African-American woman, is suddenly and inexplicably wrenched through time into antebellum Maryland. After saving a drowning white boy there, she finds herself staring into the barrel of a shotgun and is transported back to the present just in time to save her life. During numerous such time-defying episodes with the same young man, she realizes the challenge she’s been given..."

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