Afinal, o que é a literatura gótica?

outubro 05, 2020



Em nome do meu projecto pessoal que decidi intitular de Outono Tenebroso, decidi fazer uma série de posts relacionados com o tipo de livros que irei ler durante os próximos tempos, seja em formato de opiniões, recomendações, listas, no âmbito da literatura, do cinema ou da televisão. Se me acompanham pelo Instagram, irei actualizando tudo de forma mais recorrente, havendo um destaque só para esta temática. E decidi, portanto, começar com este tema: o que é a literatura gótica?

Ora bem, adoro literatura deste género e fiz alguma investigação na faculdade sobre este tema. Quando dei aulas sobre o contexto em que surge a literatura fantástica tinha, inevitavelmente, que falar sobre o Romantismo e o Gótico, visto estarem ambos na génese da Fantasia, e eram das aulas que mais gostava de dar. Mas então, vamos lá descortinar isto e tirar as dúvidas.



Se formos à origem da palavra "gótico", este termos estava ligado aos Godos, um povo germânico considerado como um dos responsáveis pela queda do Império Romano no século V e, por isso, o termo passou a estar associado a características bárbaras, de conotações negativas, e a palavra "gótico", mais tarde, surge como termo pejorativo para nomear a Idade Média como uma "Idade das Trevas". Assim, já nos séculos XVIII e XIX, o termo gótico passa a aludir à arte e arquitectura góticas, que nasceram durante. o século XII e são típicas da Idade Média; ao próprio período da Idade Média, aqui entendida como uma era bárbara; e ao romance gótico do século XIX.

As obras de ficção gótica começaram a surgir a partir do fim do século XVIII e foi nesse período que foram publicadas as obras fundadoras do género: The Mysteries of Udolpho (1794) de Ann Radcliffe, The Monk (1796) de Matthew Gregory Lewis, Vathek (1782), de William Beckford, e aquela que é considerada a primeira obra do género: The Castle of Otranto (1764) de Horace Walpole. E é nesta obra que aparecem algumas das convenções que se vão tornar seminais em obras literárias góticas posteriores, como por exemplo: o cenário histórico e arquitectónico reminescente do período medieval, normalmente castelos, mosteiros, abadias, ou outros edifícios que têm uma dimensão considerada antiga e misteriosa; os elementos sobrenaturais ou fantasmagóricos; a atmosfera melancólica; e a exploração da dimensão psicológica das personagens. O ambiente que é criado é sombrio, por vezes opressivo, misterioso e que causa uma hesitação constante por parte do leitor em relação ao que está a ler, colocando a ênfase nas emoções ligada à estética do sublime, de algo que está para lá de nós. Pode levar ao sentimento de horror e medo e é essa a grande marca da literatura gótica. 

Já no século XIX, a literatura gótica ganhou particular importância e é neste período que surgem obras que são, hoje em dia, considerados expoentes máximos deste género, como Frankenstein, de Mary Shelley, The Picture of Dorian Gray, de Oscar Wilde, Dracula, de Bram Stoker e The Turn of the Screw, de Henry James. Destaque, ainda, para o francês Gaston Leroux, que escreve O Fantasma da Ópera, entre 1908 e 1910 (leiam o livro e esqueçam o filme). É nesta altura que surgem os vampiros na literatura, tendo a primeira obra vampiresca sido The Vampyre (1819), de Polidori, sendo esta considerada a precursora da literatura de vampiros. Se querem vampiros dos originais é aqui que os encontram, tanto na obra de Stoker, Polidori, mas também em Carmilla, de Sheridan Le Fanu. Já na esfera da cultura americana, o grande autor de literatura gótica é Edgar Allan Poe, que se focou mais na dimensão psicológica das suas personagens e respectivas descidas à loucura, como nos contos "The Fall of the House of Usher" e "The Pit and the Pendulum", sem esquecer o seu poema The Raven, publicado em 1845. Por esta dimensão psicológica, o gótico sempre convidou a leituras psicanalíticas, por explorar elementos da psique humana que, até então, não eram mencionados.

Vale a pena mencionar, ainda, os Penny Dreadfuls. E o que eram? Os penny dreadfuls eram pequenos episódios literários baratos, vendidos por 1 penny, e que contavam histórias de horror ou terror e que saíam todas as semanas. Daí o nome: penny dreadful. Estes contos ficavam-se nos aspectos mais gore de crimes e eventos sobrenaturais, e tiveram grande popularidade a partir de meados do século XIX no seio da sociedade vitoriana.

Mas atenção: Gótico não significa, necessariamente, Vitoriano e vice-versa. O período vitoriano diz respeito à época do reinado da rainha Vitória, que esteve no trono inglês de 1838 a 1901. O género do gótico surge antes do período Vitoriano, perde alguma importância durante algumas décadas do século XIX e volta a ganhar fulgor nas últimas décadas desse século. Percebo que haja, por vezes, alguma confusão e que ambos sejam considerados sinónimos, mas não são. Existem, ainda, obras produzidas no período Vitoriano, mas que não têm características do gótico, como são o caso de Charles Dickens, Elizabeth Gaskell, George Eliot e William Thackeray. Então e as irmãs Bronte, são literatura gótica? São, sim. Tanto Charlotte como Emily, com Jane Eyre e Wuthering Heights, respectivamente, fizeram uso de convenções góticas nas suas obras e enquadram-se neste género.



No século XX, este género continuou presente na cultura popular, ainda que tenha sofrido algumas transformações para se adaptar a uma nova realidade, novos públicos e novos meios de divulgação. Neste sentido, começa a haver uma mudança complexa do gótico para o horror e o terror que não dá para ser aqui resumida, uma vez que é bastante complexa, mesmo em termos teóricos. Afinal, há romances góticos que não têm elementos de horror, e nem todas as obras de horror são góticas também. Há, ainda, o terror, que é algo diferente, a que Stephen King, por exemplo, atribui três níveis distintos no que diz respeito aos efeitos provocados no leitor: o primeiro diz respeito à menção a coisas que não são vistas, mas sugeridas, causando desconforto ao leitor; o segundo é o do medo, que pode provocar uma reacção no leitor; e o terceiro é o da repulsa. Houve mudanças históricas também, afinal aquilo que metia medo há 200 anos atrás, já não tem o mesmo efeito nos dias de hoje. 

No entanto, o que acontece é que muitos dos motivos do romance gótico continuam a ser reavivados, tanto na literatura como no cinema, ora mais próximos das suas origens, ora adaptados para estes tempos que são os nossos. Neste aspecto, há obras contemporâneas que se encaixam neste género, muitas vezes chamado de Neo-Gótico, por recuperarem esses elementos e por inscreverem as suas narrativas em ambientes típicos desta literatura. Assim, têm Rebecca, da Daphne du Maurier, We Have Always Lived in the Castle, de Shirley Jackson, Interview with the Vampire, de Anne Rice e The Woman in Black, de Susan Hill. Se quiserem ir ao sul dos Estados Unidos, têm ainda o subgénero do Southern Gothic, que adopta elementos da literatura gótica mas adapta-os à realidade do sul. Nessas narrativas temos elementos relacionados com a violência, a pobreza, o crime, com cenários grotescos e misteriosos, e que encontram maior expressão em obras de autores como William Faulkner, Harper Lee e Carson McCullers.

Falta ainda falar do cinema e das séries! Este post nunca mais acaba... 

Adaptações de obras literárias góticas para o cinema não faltam - desde Dracula, a Frankenstein e Dorian Gray, Rebecca e Entrevista com o Vampiro, há adaptações para todos os gostos e quase todos os períodos. Isto acontece porque as temáticas que abordam são universais e transversais a qualquer época, e sendo a literatura gótica uma literatura transformativa, dá ela própria azo a novas reinterpretações, consoante as ansiedades do período em que uma obra é adaptada.

Mas há outras obras fílmicas e televisivas que recorrem a estes elementos narrativos e que valem a pena serem vistas. No âmbito do cinema, recomendo várias obras de Tim Burton, mestre nestes ambientes góticos e fantásticos: Sleepy Hollow (1999), adaptação de um conto com o mesmo nome de Washington Irving; Nightmare Before Christmas (1993); Eduardo Mãos de Tesoura (1990); Beetlejuice (1988); A Noiva Cadáver (2005); e Sweeney Todd (2007). Além dos filmes de Burton, têm também Crimson Peak (2015), de Guillermo del Toro; O Corvo (1994), de Alex Proyas; Only Lovers Left Alive (2013), de Jim Jarmusch; The Others (2001), de Alejandro Amenabar; e não podia deixar de lado A Família Addams (1991), de Barry Sonenfeld, que brinca com alguns dos mais usados elementos góticos para narrar a história de uma família excêntrica que não se encaixa no mundo real. Mais virado para o âmbito dos vampiros e lobisomens, têm os clássicos Underworld e Van Helsing. Não são os melhores filmes do mundo, mas para quem gosta de filmes mais virados para a acção, são bons para entreter.


No reino das séries, gosto muito e recomendo American Horror Story, cujas temporadas têm temáticas diferentes com elementos mais virados para o terror, o gótico ou o horror, em que as minhas temporadas favoritas são: Murder House, Asylum, Coven, Roanoke e Apocalypse. Recomendo, ainda, a série Penny Dreadful, que teve três temporadas, e que é das minhas favoritas da vida. Têm personagens literárias que ganham vida, têm um ambiente vitoriano propício a eventos sobrenaturais, bruxarias, sessões de espiritismo e criaturas monstruosas, e têm também a Eva Green, que é divinal (e vamos não falar no guarda roupa, porque quero as roupas todas da Eva Green!). 

Haverá muitas mais séries, filmes e livros que certamente serão fantásticos, mas vou cingir-me àquilo que conheço, que gosto e, por isso, me sinto confortável a dar a conhecer e a recomendar. Espero que tenha conseguido despertar o vosso interesse por este género e que se embrenhem na literatura gótica, tal como eu o farei nas próximas semanas!

Se quiserem pesquisar mais sobre estas temáticas, recomendo-vos dois livros académicos bastante bons e que traçam um percurso do gótico desde o início até agora, analisando as principais características deste género e as suas mutações. São eles: A New Companion to the Gothic, de David Punter (2012), e The Cambridge Companion to the Gothic, de Jerrold E. Hogle (2002).

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