Coisas de Loucos - Opinião

junho 04, 2021


Podem ouvir a minha opinião também no podcast, AQUI.

Este livro tem como ponto de partida uma pesquisa jornalística sobre o encerramento do Hospital Miguel Bombarda em 2011. No entanto, aquilo que começa por ser a primeira intenção da jornalista Catarina Gomes acaba por ser alterada, quando encontra uma caixa de cartão com vários objectos pertencentes a antigos pacientes do hospital. A partir daqui, a autora parte em busca das vidas dos pacientes a quem pertenceram alguns dos objectos, com o objectivo de reconstituir, não só, a vida daquelas pessoas, percebendo quem eram, porque foram parar ao hospital, mas também a história do próprio hospital e da psiquiatria em Portugal. 

Todas as pessoas cujas vidas, no contexto do internamento hospitalar, são referidas no livro, viveram num período em que pouco se sabia ainda sobre doenças mentais: as primeiras décadas do século XX. Por isso, o livro é também um testemunho sobre as técnicas terapêuticas da altura, bem como os comportamentos que eram vistos como sinais de doença mental, as atitudes da época em relação aos doentes mentais, as condições, a maior parte das vezes degradantes, a que estavam expostos os doentes no Miguel Bombarda, ficando o leitor com uma visão abrangente da forma como eram tratadas e encaradas estas pessoas - sendo marginalizadas, colocadas num manicómio, para serem quase esquecidas e anuladas, tanto pelas famílias como pela sociedade.

Este livro não é fácil. É um conjunto de histórias de vida não contadas e encapsuladas numa caixa de cartão, reduzidas a uns quantos objectos. O trabalho de investigação da autora é notável, uma vez que acaba por fundir as histórias pessoais destes pacientes com a história do Hospital Miguel Bombarda e com a história da psiquiatria no nosso país. As histórias são variadas, mas marcantes, porque mostram algo que ainda persiste: o estigma da doença mental e o quão, durante décadas, a primeira atitude a ser tomada era relegar estes doentes para um espaço de isolamento, afastados do restante mundo, muitas vezes para ficarem internados durante décadas, vivendo praticamente todas as suas vidas num hospital. 

Não li o livro de uma assentada, porque este livro não é para ser lido assim. Precisei de pausas, de intercalar com outras leituras, de forma a conseguir digerir o que estava a ler, porque não é fácil entrarmos em contacto com aquelas vidas. Além disso, o livro está cheio de fotografias tanto dos objectos, como do próprio hospital, das pessoas que nele estiveram internadas, desde o início do século até, sensivelmente, aos anos 80. Confesso que as fotografias me assombraram um pouco, porque é quase como se fossemos forçados a reconhecer a existência daquelas pessoas que, de alguma forma, foram esquecidas e incompreendidas.

Coisas de Loucos é uma leitura muito enriquecedora, ainda que dura, que revela os preconceitos em relação às pessoas com algum tipo de doença mental, e o desconhecimento de como lidar com elas e trata-las de forma digna. Em relação a isto, ainda bem que já se evoluiu tanto ao nível da ciência ao ponto de se eliminarem "tratamentos" que roçavam a tortura, por se considerar que estas pessoas tinham de ser retiradas da vida social e isoladas para se tratarem - se é que se pode chamar de tratamento ao que se fazia - e conferir uma maior humanidade a estes pacientes. Gostei muito deste livro e da forma como estas pessoas são aqui retratadas.


5/6 - Muito Bom

(Esta leitura conta para o desafio Mount TBR Reading Challenge 2021)

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Detalhes

Editora: Tinta da China
Páginas: 327
Sinopse:
"Uma caixa de objectos abandonados no Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda contém as pistas para resgatar do esquecimento a vida de doentes que ao longo de décadas ali permaneceram confinados.
Coisas de Loucos teve origem na descoberta acidental de uma caixa de objectos de antigos doentes do primeiro hospital psiquiátrico português, o Miguel Bombarda.

Catarina Gomes inicia então uma série de investigações para encontrar os «loucos» a quem pertenciam esses objectos abandonados. Nascidos entre o final do século xix e o começo do século xx, muitos foram admitidos em «Rilhafoles», nome original do Bombarda. Os psicofármacos e a terapia ocupacional não tinham ainda sido inventados, e por isso o único «tratamento» que receberam foi o do isolamento.

Mas antes de serem forçadas ao confinamento estas pessoas tiveram família, amores, trabalho, tiveram planos de futuro. São essas suas vidas que Catarina aqui resgata do esquecimento."

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