A Irmã - Opinião

setembro 04, 2020



Sándor Márai não me é desconhecido, afinal, já é o terceiro livro que leio do autor. E para quem já leu outros livros deste autor húngaro, já sabe com o que pode contar em termos do seu estilo de escrita. Livros curtos, mas densos, que retratam inquietações humanas de forma original e profunda, quase como se fossem estudos filosóficos sobre uma temática. Escrito em 1946, já no pós-guerra, este romance ainda revela as marcas dessa época, uma vez que a narrativa se passa durante o período da guerra e antes dela, para descrever determinados contextos e estados de alma que influenciam cada personagem.

Inicialmente, temos um encontro entre a personagem principal, Z., e o narrador da primeira parte do livro. Conhecidos de longa data, mas que não se falam há muitos anos, encontram-se por acaso num hotel isolado nas montanhas por conta do mau tempo na altura do natal. Aí, Z. revela que padeceu de uma doença misteriosa que acabou por afastá-lo dos palcos e o atirou praticamente para o anonimato. Após este encontro, e passados alguns meses, o narrador do livro receber um manuscrito no qual Z. relata aqueles meses depois de adoecer, em Florença.

Não sabemos muito sobre a doença de Z., mas isso também não é importante. Neste manuscrito temos reflexões sobre a vida e a morte, a doença, a solidão, a sanidade e a loucura, a paixão, as mentiras, o amor, quase como se a doença fosse uma manifestação de uma crise existencial vivida pelo protagonista e que o forçou a parar para avaliar a sua vida. Por isso, apesar de curto, este é um livro denso com um grande carácter existencialista e algo filosófico, através das discussões que Z. tem com o seu médico e com as pessoas que tratam dele quando está internado.

Não é um livro fácil de ler, exige atenção, concentração e disponibilidade mental para o entender no seu todo. Márai consegue criar um tipo de atmosfera que nos coloca imediatamente num determinado local e estado de espírito para interiorizarmos, em nós, as inquietações das personagens, fazendo com que nos questionemos com elas. A certa altura, o livro é só sobre os pensamentos e os estados mentais de Z., tornando esta narrativa profundamente intimista e até solitária, por vezes. 

Gostei deste livro pelas questões que coloca e que nos põem a pensar também. Eu acho que Sándor Márai tem uma escrita algo enigmática, que esconde significados para além da palavra escrita e eu gosto bastante disso, por nos revelar verdades que não são assim tão óbvias. No entanto, não consegui criar ligação com a personagem principal e isso é muito importante para mim, uma vez que é através das personagens que eu começo a criar uma ligação ao próprio livro. 

Não é que a personagem esteja mal construída ou seja inverosímil, eu é que não me identifiquei com aquele estado de Z., apesar de ter gostado das reflexões que o seu estado convida. Lembrei-me muito do Johnny Got His Gun, do Dalton Trumbo, que não consegui ler por ser muito claustrofóbico e, de certa forma, senti um pouco isso neste livro também, uma vez que passamos muito tempo na mente de Z., numa cama de hospital durante vários meses, quase sem se conseguir mexer, num quarto que só tem uma janela que dá para um muro. O ambiente é muito fechado, tanto a nível exterior como interior, e isso mexeu comigo durante a leitura, de vez em quando até parecia que me sentia cansada e precisava de espairecer.

Mas os bens livros também fazem isso connosco: mexem com as nossas emoções e provocam reacções fortes que podem chegar a ser físicas. Se gostam da escrita de Márai, aconselho este livro. Se nunca leram nada dele, comecem antes pelo As Velas Ardem Até Ao Fim, que é belíssimo.


4/6 - Bom

(Esta leitura conta para o desafio Mount TBR Reading Challenge 2020)

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Detalhes

Editora: Dom Quixote
Páginas: 216
Sinopse:
"No auge da sua carreira como pianista, Z. apanha um comboio com destino a Florença, cidade onde, a convite do governo italiano, irá dar um concerto. Pouco antes de cruzar a fronteira, é acometido por uma indisposição, e, depois da sua atuação, acaba por ser internado num hospital florentino, sendo-lhe diagnosticada uma rara doença viral.

Aí, enquanto paira entre a vida e a morte, Z. levará a cabo um diálogo intenso e crítico com o seu médico, uma indagação sem concessões sobre o precário equilíbrio entre o poder curativo da ciência e o espírito de luta do paciente. Uma noite, presa do delírio causado pela morfina, Z. escuta uma voz feminina, que lhe sussurra: «Não quero que morra.» E estas palavras terão nele um efeito medicinal, levando-o a repensar aspectos fundamentais da sua vida. Será aquela «força feminina», aquela energia que age mascarada, a lutar por ele, a trazê-lo de volta à vida.

Escrito em 1946, no seguimento de "As Velas Ardem até ao Fim", este romance é mais um claro exemplo da especial sensibilidade e talento do grande escritor húngaro para abordar as principais preocupações do ser humano, aquelas que transcendem as fronteiras históricas e geográficas. A paixão, o sofrimento, a doença, o êxtase provocado pela arte e o mistério da morte são alguns dos temas intemporais que Sándor Márai aborda de forma magistral ao longo destas páginas - a última obra que publicou no seu país, antes de partir para o exílio."

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