Literatura Arturiana Pós-Medieval

novembro 16, 2020


Este post era para ter sido publicado a semana passada, mas não conseguir fazê-lo. Só no fim-de-semana é que me pude sentar para escrever algo com pés e cabeça sobre este tema. Porque há tanta, mas tanta coisa sobre a lenda Arturiana adaptada a meios contemporâneos, que não dá para falar de tudo, como é óbvio. Mas, mais uma vez, vamos começar pelo início. Para quem perdeu o primeiro post, nele falo das origens da literatura Arturiana no período medieval. Hoje, foco-me nas suas adaptações pós-medievais.



O século XIX foi muito importante para a lenda Arturiana, especialmente porque esta foi uma época de recuperação de estéticas, ideais e valores medievais, espelhando-se na literatura, na arquitectura e na arte em geral (só para lembrar que me estou a cingir ao contexto britânico). A esta revisitação e recuperação de  e temas e imagens reminescentes do período medieval, mas que servem valores, ideais e objectivos pós-medievais, chama-se Medievalismo. Como tal, o século XIX, e em especial a sociedade Vitoriana, vai recuperar a lenda Arturiana nas mais variadas vertentes como forma de tentar evocar um período visto de forma idealizada, com uma ordem social específica a que os Vitorianos almejavam alcançar novamente. Assim, a Idade Média era vista como uma Era Dourada britânica, em parte histórica e em parte mítica, que teve grande impacto na cultura do século XIX.

Neste sentido, o fascínio pelo período medieval trouxe um renovado interesse pelos romances de cavalaria  e pelo código de conduta dos cavaleiros medievais, tal como eram difundidos pelos romances Arturianos. Todo o homem deveria aspirar ao comportamento e valores pelos quais os cavaleiros se regiam e, por isso,  obras medievais esquecidas foram re-descobertas e alvo de novas publicações, como Le Morte D'Arthur e Sir Gawain and the Green Knight, esta última editada pela primeira vez em 1839 por Frederik Madden. A obra de Malory levou a inúmeras adaptações e reinvenções da lenda Arturiana, nomeadamente por parte da Irmandade Pré-Rafaelita, na área da pintura, e por Alfred Lord Tennyson, na área da literatura.

No que diz respeito aos Pré-Rafaelitas, são inúmeros os quadros pintados que ilustram cenas específicas de Le Morte D'Arthur, ou personagens da esfera Arturiana. Um dos meus pintores favoritos é Edward Burne-Jones, que pintou quadros como The Beguiling of Merlin, retratando a cena em que Vivien enfeitiça Merlin e este fica aprisionado dentro de uma árvore, inspirando-se num poema de Tennyson "Merlin and Vivien". Dele é também The Last Sleep of Arthur. Outro quadro meu favorito é o The Lady of Shallot, de William Holman Hunt, que retrata a maldição de uma mulher que vive confinada numa torre de Camelot, condenada a olhar para o mundo exterior através de um espelho, tecendo aquilo que vê num tear. Até ao dia em que, ao ver Lancelot, ela olha para fora da sua janela, directamente para o mundo real, fazendo com que se abata sobre si a maldição. O espelho quebra-se, ela encontra um barco onde inscreve o seu nome e o rio leva-a até Camelot, onde acaba por morrer.

Este The Lady of Shallot é inspirado num poema de Tennyson, com o mesmo título, que espelha uma enorme influência da estética medieval combinada com a estética do Romantismo, aliando ambas numa nova adaptação da lenda Arturiana. Tennyson é responsável, ainda, por uma das obras mais influentes do século XIX, The Idylls of the King, um ciclo de doze poemas que recontam a história de Artur, do amor proibido entre Lancelot e Guinevere, dos seus cavaleiros, e da ascensão e queda de Camelot. Nesta obra,  Tennyson adiciona, remove e transforma alguns elementos de forma a adequarem-se aos ideais e valores Vitorianos, construindo uma alegoria da sociedade Vitoriana através da lenda Arturiana. Esta obra acaba, assim, por servir de crítica à sociedade deste tempo que olha para a Idade Média de forma romantizada e idealizada,  na busca de ideais que são inverosímeis. Tennyson é, assim, uma influência fulcral para os Pré-Rafaelitas, mas também responsável pela utilização de uma narrativa medieval para servir propósitos contemporâneos da sua época. E é esta maleabilidade da lenda e das narrativas Arturianas que faz com que ela seja constantemente alvo de adaptações e revisitações nos mais variados meios, já entrando no século XX.


Ora bem, novas adaptações da lenda Arturiana nos séculos XX e XXI são mais que muitas e eu não vou falar de todas, como podem adivinhar. No entanto, é interessante perceber que estas narrativas oferecem um enorme potencial de transformação a qualquer período e a qualquer tipo de valor que se pretende transmitir. Não nos esqueçamos, por exemplo, que Jackie Kennedy comparou a presidência do seu falecido marido, John Kennedy, a uma Camelot dourada e esplendorosa que terminou com o seu assassinato.

Na literatura, há obras que são fulcrais no que toca não só à recuperação da lenda Arturiana, como também à sua reinvenção para servir propósitos e públicos contemporâneos. Não nos esqueçamos da obra de TH White, The Once and Future King (1958), baseada na obra de Malory, mas com um cunho mais humorístico no qual se explora questões de natureza humana, especialmente no que toca ao poder, e como Artur tenta ser o cavaleiro perfeito. A primeira parte, ou o primeiro livro, que compõe esta obra, The Sword in the Stone, deu origem ao filme da Disney com o mesmo nome, mais conhecido por cá como A Espada Era a Lei (1963).

Outra obra impossível de mencionar é As Brumas de Avalon (1983), de Marion Zimmer Bradley, que confere uma roupagem feminista a uma obra que tem, como qualquer obra medieval, um pendor patriarcal, onde as grandes figuras são masculinas e as mulheres ora são idealizadas ora vilificadas. Nesta obra, Zimmer Bradley foca-se nas figuras femininas que estão ligadas à magia, ao conhecimento do mundo natural e dos mistérios que estão para lá daquilo que vemos com os nossos olhos. No entanto. há autores que se afastaram desta atmosfera mais mágica da lenda para se focar num possível passado histórico que ajuda a contar a história de Artur que está profundamente ligada à história da Grã-Bretanha, como é o caso de Bernard Cornwell, com a sua Trilogia dos Senhores da Guerra (1995-1997). Nela, Cornwell recupera algumas personagens menos conhecidas ou até esquecidas da lenda Arturiana, conferindo-lhe uma aura mais histórica.

Outros autores são igualmente importantes no que diz respeito à presença da lenda Arturiana na literatura, como Stephen Lawhead, Rosalind Miles, Mary Stewart, Rosemary Sutcliff e até JRR Tolkien, com The Fall of Arthur, um poema inacabado do autor, em verso aliterativo, em que Artur figura como um líder militar bretão contra os invasores saxões. E já que falamos de Tolkien, apesar de ele não ser fã da lenda Arturiana, a sua influência é inegável em O Senhor dos Anéis e num dos ensaios seminais sobre Fantasia, "On Fairy-Stories", Tolkien afirma que a lenda Arturiana faz parte daquilo a que ele chama de Caldeirão das Histórias, que são as fontes da Fantasia. E é, de facto, neste género que as histórias Arturianas mais abundam, pelo seu potencial ligado à magia e ao sobrenatural, principalmente pela presença de figuras como Merlin e Morgan Le Fay, a Dama do Lago, a espada Excalibur e a presença da Ilha de Avalon.


E passando para o cinema e para a televisão, as histórias do Rei Artur são, provavelmente, as histórias de origem medieval mais adaptadas para o cinema e para a televisão, seguindo-se as de Robin Hood. Basta uma pesquisa no doutor Google e têm listas infindáveis de adaptações Arturianas. Por isso, vou cingir-me aqui às minhas favoritas.

O filme que talvez melhor capte a essência original da lenda Arturiana presente na literatura medieval, é Excalibur (1981), de John Boorman. Já vi este filme vezes sem conta e a atmosfera que Boorman cria é muito semelhante à atmosfera criada pelos romances Arturianos originais. Boorman confessa, ainda, influências da estética Pré-Rafaelita e motivos de origem Celta, e ainda uma curiosidade: Boorman fez este filme numa altura em que estava a considerar filmar uma adaptação de O Senhor dos Anéis... Outro filme importante, mas no extremo oposto, é Monty Python and the Holy Grail (1975). Este é um filme de comédia que, mais uma vez, se serve de elementos da literatura Arturiana para tecer um comentário mordaz à sociedade britânica do seu tempo, num filme cheio de ironias. É de morrer a rir. Vejam!

Existem, ainda, interpretações mais românticas, como Lancelot, O Primeiro Cavaleiro (1995), que solidificou a presença de Richard Gere como grande galã do cinema, mas não esperem uma adaptação fiel à obra. Não nos podemos esquecer de King Arthur (2004), que tenta adicionar um pouco de realismo e de contexto histórico à lenda Arturiana, e de King Arthur: The Legend of the Sword (2017), de Guy Ritchie. Este é um filme cheio de acção, magia, a pender para o fantástico, com uma nova roupagem em relação aà espada Excalibur - Ricthie confere-lhe o significado medieval, mas relatado de forma diferente. É interessante, mas o filme é péssimo. Sorry!

No que diz respeito a séries de televisão, não há como não mencionar Merlin (2008-2012), da BBC, que apresentou a lenda Arturiana e as suas personagens a um público mais jovem e mais consumidor neste formato e que aproximou estas histórias de um formato mais ligado à Fantasia, sendo o foco a personagem Merlin. Este ano foi lançada uma nova série (que ainda não vi, confesso), chamada Cursed, da Netflix, baseada na novela gráfica com o mesmo nome, da autoria de Frank Miller e Tom Wheeler, que reimagina a lenda Arturiana através do olhar de Nimue.

Claro que há muitos mais livros, filmes e séries, mas tentei focar-me naquilo que achei essencial e mais relevante para o que queria partilhar. Como podem ver, estas histórias estão sempre a ser renovadas, reimaginadas e adaptadas para servir propósitos, públicos e valores diferentes, conforme as épocas que se vão vivendo. Mais de 1000 anos depois, continuamos fascinados e apaixonados por estas histórias, pelas épocas que elas evocam, pelas personagens que nelas habitam, pelas aventuras e demandas dos cavaleiros, pela magia de feiticeiros e feiticeiras e pelos mistérios que continuam a suscitar interesse nas mais variadas áreas - tanto do entretenimento como do saber. 

Se Artur, de facto, existiu se calhar não interessa nada. O que interessa é o quão enraizado e presente ele está no nosso imaginário e como continua a ser alvo de novos olhares. É um tema que me apaixona e adoro falar sobre isto. Por isso, se tiverem questões ou sugestões a fazer, é só deixarem nos comentários ou enviarem-me um e-mail.

You Might Also Like

0 comentários